Kunsthalle Lissabon | Words Don't Come Easy: Nuno Sousa Vieira


Conversa entre Nuno Sousa Vieira, João Mourão e Luís Silva, a propósito da exposição X-Office for a Sculpture, realizada na Kunsthalle Lissabon, em Julho de 2009.

(versão em PDF)

O X, replicado exaustivamente e consequentemente automatizado através de expressões como, por exemplo, "X marks the spot", representa uma incógnita, o desconhecido, mas também se constitui como o local onde duas linhas concorrentes, dois percursos, se preferirmos, se interceptam, criando um ponto, definido única e exclusivamente pela sua localização no espaço. O que é que o X no título deste projecto, X-Office for a Sculpture, sinaliza?

Sinaliza a incógnita de um ponto de partida. No contexto da minha produção artística, o espectador é constantemente convocado para um tempo que não é o que está a ser experienciado naquele momento. Em todas as obras existe um momento de aparição - o X tempo e lugar, onde a obra se dá a ver ao seu produtor e, para mim, esse é o lugar da obra, lugar esse que contém um tempo, que se inscreve vertiginosamente no passado. O meu desejo de revisitar esse lugar de criação e de o partilhar com o outro requer uma marcação.
No momento em que eu desenvolvo um projecto existe um grau de imprevisibilidade face ao que vai ser o resultado de determinado procedimento, já que não imagino os meus trabalhos dotados, à partida, de uma forma específica. No decurso da realização de uma peça surge uma acção, que resultará obrigatoriamente numa forma, mas essa só se tornará visível diante dos meus olhos após a sua materialização; facto que constitui o X como incógnita.
Por outro lado, o X de duas concorrentes é uma das três possibilidades de definição de um plano e o plano, bidimensional e não matérico, existente apenas no mundo das ideias, é a mais elementar parcela do meu trabalho, as minhas esculturas não são tridimensionais, são os procedimentos que sobre os planos desenvolvo que os tridimensionalizam.

Neste caso concreto, estás a convocar o espectador não só para um tempo diferente, o passado, como para um contexto diferente, um escritório. O material que usas nas duas esculturas não só tem origem, como define e delimita esse passado e esse contexto prévios; a tua intervenção parece então operar não só uma alteração formal e conceptual da estrutura que utilizas como, nesse processo re-articula e redefine as próprias premissas do espaço, de maneira a acompanhar e proporcionar um contexto coerente e significante para as tuas peças. Quando desenvolveste este projecto tiveste em mente as consequências dessa redefinição das premissas do espaço pela tua acção sobre o que lá existia, ou é uma espécie de subproduto que não te interessa particularmente? Ou dito de outra maneira, é de alguma forma diferente, apresentares este trabalho na Kunsthalle Lissabon de o fazeres num qualquer outro local (genérico)? Fazemos-te esta pergunta porque o convite para desenvolveres este projecto e seres o primeiro artista convidado não foi gratuito: resulta do interesse, quase subversivo, em ser o artista, pela sua prática, um dos agentes privilegiados de transformação (e sobretudo, legitimação) de um espaço qualquer num espaço expositivo, numa Kunsthalle, e não o oposto.

A convocação de um outro tempo acarreta sempre um novo contexto. O que me interessou neste projecto foi sentir e intuir as potencialidades do espaço e ter percebido de que forma é que seria possível articulá-lo com o trabalho que tenho vindo a desenvolver. Os meus últimos projectos convocam o espaço do meu ateliê como material e matéria de produção. Um outro espaço poderia ser perigoso: o facto de repetir alguns procedimentos poderia ser entendido como a aplicação do mesmo princípio num outro local. Os meus trabalhos não pretendem ser site-specific, mas a sua elaboração e produção contemplam algumas das premissas dessa tipologia de prática. O espaço da Kunsthalle não tem qualquer aproximação, do ponto de vista físico, com o espaço do meu ateliê; as dimensões são opostas, o tempo é diferente, a função de cada um dos espaços não é a mesma. O meu ateliê era uma antiga unidade fabril e a Kunsthalle está sediada num espaço que funcionava para a prestação de serviços mas, existe, no entanto, um ponto de aproximação entre eles, ambos estão desactivados e mantêm elementos que os conectam com as suas anteriores actividades. Estão desactivados e não degradados e em nenhum deles foi a deterioração da estrutura que motivou o seu abandono.
No meu trabalho existe um desejo de recolocar no patamar do visível elementos, objectos ou situações que estavam condenados ao abandono e ao desaparecimento. A arte tem essa capacidade de transformação e de recolocação e isso interessa-me bastante. No meu trabalho, no entanto, procuro manter características que permitam a identificação e o reconhecimento. O que está diante dos olhos do espectador convoca uma outra situação, dirige para um outro tempo, mas passa sempre pela possibilidade de identificação do que cada um daqueles elementos, objectos ou situações especiíficos foi ou ainda é.

Pode então dizer-se que há um trabalho de cristalização de uma memória específica? Uma estratégia de preservação, não descontextualizada, mas antes recontextualizada, de um passado recente? A metáfora da arqueologia acabou de nos aparecer como relevante no teu processo de trabalho...

Sim e não. Existe da minha parte um desejo de tentar perceber e conhecer ambos os lados e colocar um ao serviço do outro. O objecto, que confronta o olhar do observador é um pretexto, uma espécie de embuste, que fomenta e possibilita o confronto, por vezes desviante, entre o que a obra é, de facto, e o que é dado a ver.

Essa dialéctica embustiva, se assim a podemos chamar, entre aquilo que a obra é (que por si só já é algo problemático) e aquilo que é dado a ver, pode ser articulada também em termos de realidade e percepção, que é outra porta de entrada para o teu trabalho. Cortes, torções, desvios, rotações constituem, de alguma forma, elementos de uma gramática muito específica que visa deteriorar (ou pelo menos causar um efeito desestabilizador) a percepção e, consequentemente, a relevância dada à empiria como modo privilegiado de acesso ao real. Podemos encarar o teu trabalho como uma crítica da empiria?

De certa forma sim… nos meus trabalhos existe uma certa ironia, aparentemente e num primeiro momento, está tudo resolvido; o desconforto, o desvio, o embuste estão lá, e sempre estiveram, mas só se tornam evidentes quando o espectador começa a articular as diversas partes e elas não se interligam segundo os mesmos princípios, tornando-se necessário voltar atrás e começar tudo de novo, procurar novos caminhos e novas perspectivas. Não existe um só percurso para um fim, nem existe sempre a mesma lógica de percurso.

Mas a possibilidade dessa tal leitura crítica relativamente a um certo determinismo empírico deve ser algo que é recorrentemente apontado na tua prática... o legado da representação geométrica e as experiências de cariz formal que desenvolves em estruturas eminentemente arquitectónicas apontam nesse sentido...

Não me parece… é recorrente o facilitismo com que, por diversas vezes, assisto a posturas que reduzem a prática artística a conceptual ou formal, como se uma existisse sem a outra, como se alguma delas existisse em absoluto, como se não fosse uma utopia ou um desvio da realidade ou, menos interessante, como se não existisse mais nada. Isso seria bom, seria tudo mais fácil e muito mais simples; o reconhecimento e o entendimento saíam facilitados, mas por ventura tornar-se-ia menos interessante. No meu trabalho recorro ao legado da organização, conhecimento, reconhecimento e utilização do espaço. Nesse sentido, a arquitectura faz sentido, a representação geométrica faz sentido, a observação cósmica faz sentido, as acções fazem sentido...

Mas a ligar todos esses aspectos a que recorres, ou a dar-lhes sentido, se preferires, encontra-se a ideia do desvio, que nos faz voltar ao início desta conversa... existe uma pulsão recontextualizante associada ao desvio (de carácter eminentemente semântico) que pode ser considerado o fio condutor?

Existe. Não sei se poderá ser considerado fio condutor, mas sem dúvida que o embuste e o desvio são características do meu trabalho e, em última instância, a minha primeira abordagem a um plano metaforiza esse desvio. Ao tentar efectivar a marcação de um rebatimento do lado menor sobre o maior, o quadrado não se constrói, uma das linhas sai desviante e é um trapézio que se desenha, um trapézio rectângulo, ou melhor, um quadrado a dois tempos. Este pode ser o primeiro embuste ou engano, mas existem mais; não sei se se efectivam como fio condutor.

E neste projecto concreto, X-Office for a Sculpture, qual é o embuste?

Essa pergunta não se faz (risos). A sua resposta mataria o projecto…
Não existe um embuste no sentido de este projecto específico recorrer a um embuste específico, e o projecto anterior recorrer a outro. Não se trata de uma carteira de embustes a que eu recorro e da qual selecciono um para cada novo trabalho; o que existe é que, a determinada altura, a obra aponta para coisas que não se efectivam segundo os padrões definidos. Por exemplo, o meu trabalho é escultura, mas não é escultura, é uma superfície bidimensional que, por acção do tempo, se tridimensionalizou… assim sendo, aquelas esculturas são, na realidade, desenhos.

Tens razão... não falemos do embuste... falemos então dos títulos das peças e, mais especificamente, da referência que fazem a um buraco ou um furo (hole, em inglês). De onde vem esta referência (Hole for Wall, o título da peça principal, e The Hole of the Wall, a escultura feita a partir do material que removeste da peça principal para lhe conferir aquela inclinação) e qual a relação, se existente, com o título da exposição, X-Office for a Sculpture?

Os títulos são o que são, um caminho de entrada, mas não o único caminho permitido. Existe, da minha parte, uma evocação para o processo, a forma final é um pretexto que documenta uma acção e os títulos convocam precisamente para esse momento de génese criativa, onde a matéria prima, que era produto acabado, se transforma em objecto artístico.